MAIS UMA CONTRIBUIÇÃO DO COMPANHEIRO CARLOS SÉRGIO SILVA DA SILVA, DIRETO DE BRASÍLIA (DF)
Euclides da Cunha, Judas-Asvero – in: Cunha, Euclides da, 1866-1909. Um paraíso perdido : reunião de ensaios amazônicos / Euclides da Cunha ; seleção e coordenação de Hildon Rocha. -- Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2000. 393 p. -- (Coleção Brasil 500 anos) 1. Amazônia, descrição. 2. Usos e costumes, Amazônia. 3. Literatura, Brasil. I. Título. II. Série.
No sábado de Aleluia
os seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo.
Ante a concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as
maldades.
Acreditam numa
sanção litúrgica aos máximos deslizes.
Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e
despeado das insídias humanas, sorri, complacentemente, à alegria feroz que
arrebenta cá embaixo.
E os seringueiros
vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes.
Não tiveram missas solenes, nem procissões luxuosas, nem lava-pés
tocantes, nem prédicas comovidas. Toda a semana santa correu-lhes na mesmice
torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de
meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma
interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida,
pelo ano todo afora.
Alguns recordam que
nas paragens nativas, durante aquela quadra fúnebre, se retraem todas as
atividades – despovoando-se as ruas, paralisando-se os negócios, ermando-se os
caminhos – e que as luzes agonizam nos círios bruxuleantes, e as vozes se
amortecem nas rezas e nos retiros, caindo em grande silêncio misterioso sobre
as cidades, as vilas e os sertões profundos onde as gentes entristecidas se
associam à mágoa prodigiosa de Deus.
E consideram,
absortos, que esses sete dias excepcionais, passageiros em toda a parte e em
toda a parte adrede estabelecidos a maior realce de outros dias mais numerosos,
de felicidade–lhes são, ali, a existência inteira, monótona, obscura, dolorosíssima
e anônima, a girar acabrunhadoramente na via dolorosa inalterável, sem
princípio e sem fim, do círculo fechado das “estradas”.
Então pelas almas
simples entra-lhes, obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé, a sombra
espessa de um conceito singularmente pessimista da vida: certo, o redentor
universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão
relegados se acham à borda do rio solitário, que no próprio volver das suas
águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles tristes e desfreqüentados
rincões.
Mas não se rebelam,
ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da
bondade de seu deus desmandando-se em convícios. É mais forte; é mais digno.
Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza. As preces ansiosas sobem por
vezes ao céu, levando disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a
divindade; e ele não se queixa.
Tem a noção prática,
tangível, sem raciocínios, sem diluições metafísicas, maciça e inexorável – um
grande peso a esmagar-lhe inteiramente a vida – da fatalidade; e submete-se a
ela sem subterfugir na cobardia de um pedido, com os joelhos dobrados. Seria um
esforço inútil.
Domina-lhe o
critério rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, mais irredutível,
a entrar-lhe a todo o instante pelos olhos adentro, assombrando-o: é um
excomungado pela própria distância que o afasta dos homens; e os grandes olhos
de Deus não podem descer até àqueles brejais, manchando-se.
Não lhe vale a pena
penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se, reclamando uma
promoção na escala indefinida da bem-aventurança. Há concorrentes mais felizes,
mais bem protegidos, mais numerosos, e o que se lhe figura mais eficaz, mais
vistos, nas capelas, nas igrejas, nas catedrais e nas cidades ricas onde se
estadeia o fausto do sofrimento uniformizado de preto, ou fugindo na irradiação
das lágrimas, e galhardeando tristezas... Ali – é seguir, impassível e mudo,
estoicamente, no grande isolamento da sua desventura.
Além disto, só lhe é
lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para
entregá-lo, maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem – e este
pecado é o seu próprio castigo transmudando-lhe a vida numa interminável
penitência.
O que lhe resta a
fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente,
na sua forma apavorante, à humanidade longínqua... Ora, para isso, a Igreja
dá-lhe um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos
mais santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos
eleitos e à divinização da vingança.
Mas o mostrengo de
palha, trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos, não lhe basta à
missão complexa e grave. Vem batido demais pelos séculos em fora, tão pisoado,
tão decaído e tão apedrejado que se tornou vulgar na sua infinita miséria,
monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais e mais, diante de tantos
que o malquerem.
Faz-se-lhe mister,
ao menos, acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis; e mascarar-lhe no rosto
de pano, a laivos de carvão, uma tortura tão trágica, e em tanta maneira
próxima de realidade, que o eterno condenado pareça ressuscitar, ao mesmo
tempo, que a sua divina vítima, de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea
e um mais compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas
dos crentes, com a imagem tanto possível perfeita da sua miséria e das suas
agonias terríveis.
E o seringueiro
abalança-se a esse prodígio de estatuária, auxiliado pelos filhos pequeninos,
que deliram, ruidosos, em risadas, a correrem por toda a banda, em busca das
palhas esparsas e da ferragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis,
encantados com a tarefa funambulesca, que lhes quebra tão de golpe a monotonia
tristonha de uma existência invariável e quieta.
O judas faz-se como
se fez sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cosidos,
cheios de palhiças e mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo,
sem juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado, no
centro do terreiro. Por cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o
manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes.
Não basta ao
seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que é a sua
obra-prima, a criação espantosa do seu gênio rude longamente trabalhado de
reveses, onde outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia
subtilíssima, mas que é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade
dolorosa.
E principia, às
voltas com a figura disforme: salienta-lhe a afeiçoa-lhe o nariz;
reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e
aguça-lhe o queixo, numa massagem cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas,
e abre-lhe com dois riscos demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes
e cheios de um olhar misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode
ralo, de guias decaídas aos cantos. Veste-lhe, depois, umas calças e uma camisa
de algodão, ainda servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas...
Recua meia dúzia de
passos. Contempla-a durante alguns minutos. Estuda-a. Em torno a filharada,
silenciosa agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção,
que a maravilha. Volve ao seu homúnculo: retoca-lhe uma pálpebra; aviva um
ríctus expressivo na arqueadura do lábio; sombreia-lhe um pouco mais o rosto,
cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os braços; repuxa e
retifica-lhe as vestes...
Novo recuo,
compassado, lento, remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de
conjunto, a impressão exata, a síntese de todas aquelas linhas; e renovar a
faina com uma pertinácia e uma tortura de artista incontentável.
Novos retoques, mais
delicados, mais cuidadosos, mais sérios: um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço
quase imperceptível na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço
engravatado de trapos...
E o monstro, lento e
lento, num transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a
ilusão é empolgante...
Repentinamente o
bronco estatuário tem um gesto mais comovedor do que o parlansiosíssimo, de
Miguel Ângelo; arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à cabeça de Judas; e os
filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na figura desengonçada e
sinistra do seu próprio pai.
É um doloroso
triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo:
pune-se, afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e desafronta-se
da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez
mais ao plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu,
escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram.
Isto, porém, não lhe
satisfaz. A imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num
exíguo terreiro de barraca, afogada na espessura impenetrável, que furta o
quadro de suas mágoas, perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus.
O rio que lhe passa
à porta é uma estrada para toda a terra. Que a terra toda contemple o seu
infortúnio, o seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento
iníquo, exteriorizados, golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo
pregoeiro...
Embaixo, adrede
construída, desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes,
rijamente travejados. Aguarda o viajante macabro. Condu-lo, prestes, para lá,
arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros.
A breve trecho a
figura demoníaca apruma-se, especada, à popa da embarcação ligeira. Faz-lhe os
últimos reparos: arranca-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhe às costas um
saco cheio de ciscalho e pedras; mete-lhe à cintura alguma inútil pistola
enferrujada, sem fechos, ou um caxenrenguengue
gasto; e fazendo-lhe curiosas recomendações, ou dando-lhe os mais singulares
conselhos, impele, ao cabo, a jangada fantástica para o fio da corrente.
E Judas feito Asvero
vai avançando vagarosamente para o meio do rio. Então os vizinhos mais
próximos, que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm
ruidosamente, saudando com repetidas descargas de rifles, aquele bota-fora.
As balas chofram a
superfície líquida, eriçando-a; cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o
tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal
flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns
minutos, até reavivar no sentido geral da correnteza.
E a figura
desgraciosa, trágica, arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos
desmanchados, de demônio e truão, defasiando maldições e risadas, lá se vai na
lúgubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre,
desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das
correntezas, “de bubuia” sobre as grandes águas.
Não pára mais. À
medida que avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o
terror; as aves retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes;
os pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela
sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se,
lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria
recortada de espantos, fazendo o “pelo-sinal” e aperrando os gatilhos,
alvejam-no desapiedadamente.
Não defronta a mais
pobre barraca sem receber uma descarga rolante e um apedrejamento. As balas esfuziam-lhe
em torno; varam-no; as águas, zimbradas pelas pedras encrespam-se em círculos
ondeantes; a jangada balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se-lhe
os braços e ele parece agradecer em canhestras mesuras as manifestações
rancorosas em que tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros
e sobre tudo maldições que revivem na palavra descansada dos matutos, este eco
de um anátema vibrado há vinte séculos: – Caminha, desgraçado! Caminha.
Não pára. Afasta-se
no volver das águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza, em silêncio, por um
“estirão” retilíneo e longo; contorneia a arquadura suavíssima de uma praia
deserta. De súbito, no vencer uma volta, outra habitação; mulheres e crianças,
que ele surpreende à beira-rio, a subirem, desabaladamente, pela barranca
acima, desandando em prantos e clamor.
E logo depois, do
alto, o espingardeamento, as pedradas, os convícios, os remoques. Dois ou três
minutos de alaridos e tumulto, até que o judeu errante se forre ao alcance
máximo da trajetória dos rifles, descendo... E vai descendo, descendo... por
fim não segue mais isolado.
Aliam-se-lhe na
estrada dolorosa outros sócios de infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre
as mesmas jangadas diminutas entregues ao acaso das correntes, surgindo de
todos os lados, vários no aspeito e nos gestos: ora muito rijos, amarrados aos
postes que os sustentam, ora em desengonços, desequilibrando-se aos menores
balanços, atrapalhadamente, como ébrios; ou fatídicos, braços alçados,
ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos, acurvados num acabrunhamento
profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se divisam à ponta de uma corda
amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a balouçarem, enforcados...
Passam todos aos
pares, ou em filas, descendo, descendo vagarosamente... Às vezes o rio
alarga-se num imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em
giros muito lentos perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um
redemoinho imperceptível e traiçoeiro.
Os fantasmas vagabundos
penetram nestes amplos recintos de águas mortas, rebalçadas; e estacam por
momentos. Ajuntam-se. Rodeiam- se em lentas e silenciosas revistas.
Misturam-se. Cruzam então pela primeira vez os olhares imóveis e falsos de seus
olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados
e as estátuas rígidas.
Há a ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e
de um estranho conciliábulo, agitadíssimo, travando-se em segredos, num
abafamento de vozes inaudíveis. Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se;
dispersam- se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na última espira
dos remansos – lá se vão, em filas, um a um, vagarosamente, processionalmente,
rio abaixo, descendo..
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